Gemido de mixoetnias mal amadas e amalgamadas. Burburinho da rua dos reis errantes. Crônicas em fragmentos, manifestos de passagem, churrasquinho na calçada, altar do grande templo, personagens em transe, forasteiros em trânsito, zigue-zagues pelo grande gueto planetário onde quilombos encontram ecos de resistência. Xei de Exu inda por cima. Não só música excluída, mas a transfiguração dos excluídos. Música popular borralheira dos brejos de algum lugar, porque para os inquietos e os desajustados o carnaval continua...

15 de mai. de 2011

Libertas Quae Sera Tamen

Arco do Teles: 21/04/2011 – Feriado de Tiradentes.


Parte 1 - Golem Libre - Chegamos por volta das 17hs e tínhamos uma hora de luz para filmar. Fizemos a primeira, escolhida pela companhia de um desses sujeitos misteriosos que circulam por aí sem identidade, sem história. Aquele pegava guimbas no chão e depois sentou para escrever (ou pintar). Fomos perceber papel e caneta na sua mão só quando assistimos a filmagem. Parecia também um velho catador de latas, pelo saco preto que levava junto.
O golem é um ser mítico, feito de barro, presente no misticismo judaico e sabe-se lá onde mais anteriormente, associado a Frankstein e aos replicantes. A letra da música situa o golem na rua de um país tropical abençoado por deus e bonito por natureza, mas naturalmente escondido dos olhos de fora.
Fizemos dois takes da parte 1. O primeiro foi passando a música e, no fim, mostrando nosso personagem quieto e sentado. Numa jogada rápida de foco se vê que está com o papel e a caneta na mão. O segundo take aconteceu debaixo do arco. A acústica ficou  ótima e o cenário parecia de brinquedo. Reverb de jaula, Projac de rua. Esse filme foi o que mais me provocou. Fiquei pensando no homem do saco que aparece comigo na cena surreal.



Parte 2 - Civilidad – Uma parceria com Donatinho. Vinda de um Mandrake dos barulhinhos, a melodia criada por ele surge de formas diferentes e minimalistas. Toco essa música de dez jeitos. Ele chama essa de “versão gipsy durona”. A música fazia parte do repertório do Exu Mandrake, que continua em estado de criogenia, esperando a primavera chegar. Ficou só o registro de costas cantando a canção enquanto explorava o lugar atrás de um foco astral.



Parte 3 - Sambarábico – Escolhemos uma música que combinava com o mural no mesmo beco. Travessa do Comércio. E o comércio nunca mais foi o mesmo depois da expansão do Islã mundo afora. A mercadoria negra é humana, escrava e fruto de uma guerra religiosa com interesses econômicos que veio desaguar nas Américas. Dessa expansão vêm mudanças que nos chegam diretamente.  Uma delas aponta para a maior rebelião urbana de escravos das Américas. A Revolta dos MalêsE que dá nome ao personagem: Exu Mustafa. Eram nagôs islamizados que, em geral, por saberem escrever em árabe e serem versados no Alcorão, se articularam em algumas revoltas ao longo do séc. XIX. Foram eles que organizaram o movimento, como já disse Caetano, talvez um belo espécime da tribo de Jah com Alah.
A gravação quase é interrompida por um grupo de pessoas que estava passando. Talvez tivessem ficados assustados e não sabiam como se comportar diante daquele mameluco maluco tocando violão para um outro maluco mameluco filmar. No final aparece o responsável pelo “Videokê Club Gente Boa” na sacada do sobrado onde funciona o videokê. Ele convida a gente pra subir. As próximas duas partes são feitas lá dentro.



Parte 4 - As Rosas Não Falam – Cantei essa música saudoso dos meus amores perdidos. E esperançoso pelos amores que anunciam sua chegada triunfal. A lentidão do fim da tarde do lado de fora e o clima cigano deste samba do grande mestre Cartola, as imagens ao fundo, os símbolos, a bandeira do Brasil, a máscara africana no final, tudo tem o aconchego de um teto de cabaré antes da noite chegar.



Parte 5 - Oráculo – Luz indo embora. Escolhemos uma música profética que anuncia os tempos do messias pagão. O paganismo transcendental que sugere Fernando Pessoa encontra eco por aqui. Cito "Mambembe" de Chico Buarque. Talvez seja acusado por plágio, talvez não, porque na natureza nada se cria, tudo se amplia.
Gravamos na sacada do sobrado inspirado em duas meninas que me assistiam de baixo. Parecia uma serenata ao avesso, onde o negão na janela canta para as princesinhas na rua. Profetas loucos. Burguesinha, burguesinha



Parte 6 - Sabra – Depois de beber uma ou duas no videokê, ainda fizemos uma música em frente ao Paço Imperial. E aí já inspirados também pela chegada da noite. As Sabras são israelenses. Talvez resgatem no matriarcado os germes do movimento feminista. A primavera árabe começa ali, com pistoleiras espirituais. Flores e espinhos em suas armas.
Aos poucos a gravação parece entrar numa onda hipnótica com aquele cenário e a parede exterior do Paço, que ainda parece uma grande prisão. A luz no fim da tarde, o torpor da cerveja hidratando a alma, as lâmpadas e os halos de cor, tudo se misturando e embaçando a vista. A perspectiva mudando em efeitos naturais, digitais e energéticos. Auras do fim do dia. A liberdade estava consumada. Libertas Quae Sera Tamen!