Gemido de mixoetnias mal amadas e amalgamadas. Burburinho da rua dos reis errantes. Crônicas em fragmentos, manifestos de passagem, churrasquinho na calçada, altar do grande templo, personagens em transe, forasteiros em trânsito, zigue-zagues pelo grande gueto planetário onde quilombos encontram ecos de resistência. Xei de Exu inda por cima. Não só música excluída, mas a transfiguração dos excluídos. Música popular borralheira dos brejos de algum lugar, porque para os inquietos e os desajustados o carnaval continua...

27 de mar. de 2016

Cem Anos de Samba

A saída do povo israelita do Egito é lembrada a cada ano na festa de Pessach, celebrada em 2016 muito próxima à abolição da escravatura no Brasil. Já a figura de Moisés, líder político e espiritual desse evento, é um amálgama de culturas antigas.

Pela tradição judaica, o patriarca Abraão deixou descendência com três mulheres: Sara, Hagar e Queturá. Seus seis filhos com Queturá (Gênesis 25:2) nomearam outras tribos abraâmicas. Entre elas os midianitas teriam papel definitivo na elaboração do deus único.

No episódio do Êxodo, séculos depois do patriarca Abraão, portanto, Moisés é casado com uma etíope (Números 12:1), filha do sacerdote midianita Jetró. Do convívio estreito com o sogro (Êxodo 18-20), permanece o elo entre o monoteísmo midianita e o israelita, ambos descendentes de Abraão.

Freud em seu último livro, "Moisés e o Monoteísmo", escrito pouco antes da Segunda Guerra, observa o primeiro lampejo do deus único e estadista com o faraó Akenaton, que governou ao lado da rainha Nefertiti, mudando a capital do Império Egípcio para exaltar Aton, o disco solar. O atonismo é tido como a primeira religião monoteísta de caráter político, em paralelo ao deus dos escravos israelitas que vinha do panteão cananeu. Akenaton rapidamente foi deposto e sua dinastia durou pouquíssimo tempo.

Numa interpretação heterodoxa, Freud diz ainda que, pela origem do nome, Moisés e seu irmão Aron seriam egípcios ou semitas ligados à corte egípcia. As "datas" entre a queda do faraó e o êxodo de Moisés são muito próximas. Com a crise política, a corte de Akenaton e Nefertiti fora obrigada a fugir. Seria o séquito dos levitas, entre artesãos e escribas, que partiam ao lado de escravos que também cultuavam o próprio deus. Levitas e israelitas permaneceriam juntos, a partir de então, como um só povo das tribos de Israel.

Portanto a Torá guardaria práticas rituais e leis herdadas, tanto do Egito faraônico, pelos levitas, quanto através do sogro de Moisés, Jetró, que introduz elementos do monoteísmo midianita, apresentando o líder do povo de Israel ao sacerdódio abraâmico e antecipando o recebimento dos dez mandamentos. Ofício de estrategistas, conceitos e princípios que foram amalgamados numa religião em formação, o judaísmo.

A Diáspora Negra, resultado de séculos recentes de conflitos, muito sofreu com a escravidão nas Américas para afirmar sua história, cuja diversidade foi usada para um só fim. O judaísmo, por sua vez, criou a tradição em torno de Moisés, numa narrativa temporal, juntando culturas semitas com a política milenar do império egípcio. A Torá é como um primeiro samba-enredo, recontada a cada ano desde tempos imemoriais por um povo de ex-escravos na diáspora.

Este ano é o centenário do samba. "Pelo Telefone" foi uma criação coletiva da qual fizeram parte Donga, João da Baiana, Pixinguinha, o cantor Baiano, entre outros. A composição nasceu na Praça Onze, em feijoadas na casa e terreiro de Tia Ciata, mãe de santo e cozinheira, nascida em Santo Amaro da Purificação.

O candomblé, vindo com a tradição de Tia Ciata no êxodo de ex-escravos baianos para o Rio de Janeiro, fez a ponte da religião e costumes iorubás da época, em parte islamizados, com a cultura carioca. Ao mesmo tempo, além de várias práticas e regras dietéticas semelhantes aos hebreus, muitos nagôs escravizados e traficados para a Bahia traziam personagens bíblicos em seus nomes originários.

Outra celebração são os cinquenta anos dos Afrosambas, lançado em 1966. O álbum de Vinicius de Moraes e Baden Powell é um encontro de águas da MPB com os terreiros que reinterpreta a ancestralidade africana nas Américas. Por isso a importância do ano de 2016 para a memória documental brasileira.

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