Gemido de mixoetnias mal amadas e amalgamadas. Burburinho da rua dos reis errantes. Crônicas em fragmentos, manifestos de passagem, churrasquinho na calçada, altar do grande templo, personagens em transe, forasteiros em trânsito, zigue-zagues pelo grande gueto planetário onde quilombos encontram ecos de resistência. Xei de Exu inda por cima. Não só música excluída, mas a transfiguração dos excluídos. Música popular borralheira dos brejos de algum lugar, porque para os inquietos e os desajustados o carnaval continua...

16 de nov. de 2011

2002

Aproveitando o mote da última postagem, o Jean me enviou um texto sobre a gravação de 2002, falando principalmente de uma música: Insensatez. É aquela mesmo, da indefectível dupla Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Tomaí o tal texto:

Numa versão de Insensatez coloquei um discurso do presidente americano Nixon se explicando pelo escândalo de Watergate - “...let me say this: in all of my years of public life, I made my mistakes…”. Parecido com o que pairava no ar no ano de 2002. Mas o presidente Bush nunca assumiu as cagadas de Homero desnorteado. Logo depois vieram as invasões do Afeganistão e do Iraque. Resultado: ficou com dor de barriga até o final do mandato. E o milênio começou desse jeito.
Coloquei também uns vocalizes da Lucineide aquecendo a voz de belzebu-canto, fazendo escalas ensandecidas. Experiências sonoras, plásticas, insensatas.


1. O Beijo
2. Guardiã do Asfalto
3. Tempo de Cinzeiro
4. Folião
5. Quem Dorme no Ponto

27 de out. de 2011

Guardiã Do Asfalto

Em 2002 lancei de um estúdio caseiro um disco com seis faixas. Foram gravações com sucata, bacias de lavar roupa - anarcotralhas do meu parceiro Bapt, alguns programas rústicos de simulação de antigas baterias eletrônicas, amplificadores de brinquedo, barulhinhos, muito percussão. Me alegro muito quando escuto. Como se eu lesse um diário que guardo na gaveta. Diário, essa coisa do passado quando se escrevia à mão. Mas tem também a lembrança das canções que eu tocava no violão. Uma delas vim gravar, dez anos depois, no sopé de Santa Tereza, no fim de um novo dia. Fato é que, logo em seguida, tristes caminhos cruzaram os trilhos do bonde. Rio que muda sem perder o encanto. Pára o bonde, segue o trem.



Guardiã Do Asfalto

A rua respira às cinco e meia da manhã
De um dia de semana qualquer
Eu bebo um guaraná no pé dos arcos
Logo mais o bondinho vai me recolher
E avançar morro adentro
Coloco a viola debaixo do braço

Me adianto pra não perder
O primeiro bonde que está pra sair
Só deixo pra trás as minhas pegadas
Ladeiras e casas ganham
Em tons de dourado o bom dia do sol
Espano a poeira da madrugada

Ir prum cantinho no ventre da santa
É ninho aconchegante
Será que ela vela, será que ela espera por mim?
Guiando meus passos até meu destino
Ao lado dos meus
A guardiã, guardiã, guardiã do asfalto
A guardiã, guardiã, guardiã do pedaço

E é só ela me abrir a porta e receber sorrindo
Que meu dia nasce em paz
Santa paz

16 de jul. de 2011

Paganismo Transcendental

Para o consulado da Áustria em ocasião do evento realizado por Jorge Mautner sobre cultura brasileira e o escritor autríaco Stefan Sweig, autor de “Brasil, País do Futuro”, em dezembro de 2008.
Por Jean Kuperman.


As projeções provocantes de Stefan Zweig que exaltam o Brasil como o país do futuro parecem ter encontrado eco desde então. Passaram a fazer parte de um imaginário popular que, de alguma forma, seja aceitando ou rejeitando o rótulo, se identificava com a ideia, mesmo que nem lhe ocorresse de que se tratava de um livro, quanto mais de Stefan Sweig. Na aurora do séc. XXI, gigante pela própria natureza ou pelo eterno berço esplêndido das contradições humanas, para algumas dessas previsões, novas interpretações já podem ser feitas.

Para além de lutas travadas no passado, que tanto serviram para abastar os exploradores, fomentar a miséria dos explorados e que continuam sendo mimetizadas por interesses sórdidos, temos hoje um momento nunca experimentado na democracia e nas relações diplomáticas. O que nos faz perguntar se acaso são mudanças reais. Com o país politicamente elevado a uma nova categoria no cenário global de redefinição dos papéis e organização dos modelos, seu imaginário vai sendo reconstituído com o selo do poder. Certo que em meio a tantos escândalos, abusos, impunidade, quem poderia explicar balanços positivos? Mas pela primeira vez nunca se teve tanta independência, o próprio leme econômico nas mãos e a imensa reserva ainda intacta de matérias primas monitorada por um sistema em elaboração. O que implica, é claro, em maiores responsabilidades.

O panorama atual tem, entretanto, o mesmo tamanho das formas de sabotagem. As práticas de mercado cumprem a função reguladora de um planeta conectado, mas precisam lidar com condutas governamentais, com equilíbrio de forças atávicas, com a autogestão e seus humores. E nos paradoxos do novo século, que inicia sob auspícios de nacionalismos melindrosos, entre liberdade e vigilância, informação e alienação, qualidade de vida e consumo, desenvolvimento e ecologia, direitos humanos e fanatismo, em cada cena se infiltra a cultura. Agente diferenciador capaz de gerar profundas discórdias mas também elementos de identificação, as culturas são apontadas como um dos pilares de transformação mundial.

O Brasil com graves problemas sociais, tem, por isso, a contribuir. Talvez aí esteja a leitura do “país do futuro” que interessa e se revela: um país continente, um acontecimento que profetiza o encontro das culturas. Qualquer ufanismo parece pequeno diante da descoberta humana que se dá na formação do povo brasileiro. O país do futuro, já que também se descobre a si próprio. Um modelo de convívio que um mundo de transmigrações terá que produzir para seu bem estar.

Onde tribos índigenas ainda vivem numa floresta a se perder de vista? Onde escravos africanos, em muitos casos inimigos de guerras em seus territórios de origem reconstruíram suas tradições com tamanha diversidade? Onde a história reinicia e a cultura renasce transtribalizada pelos que escrevem novos capítulos da matriz indígena, da diáspora negra, da imigração dos refugiados? Macunaíma, o herói sem caráter de Mário de Andrade, e tudo o que foi tomado por falta de identidade, ressurge a cada instante.

Um lugar com dimensões continentais que pudesse aceitar e abrigar inúmeras culturas precedentes, nas palavras de Camões, Padre Antônio Vieira e depois de Fernando Pessoa, seria o caldeirão formador do quinto império cultural. Das religiões que vieram a compor o povo das Américas, enquanto a herança anglo-saxã da América do Norte está na ética reformada, protestante e puritana, as bandas do sul são latinas e católicas, e onde o paganismo encontra terreno muito mais fértil, herança de um catolicismo repleto de santos e práticas profanas na Idade Média.

Mosaico tropical, lugar de convívio imediato, que em tantas ocasiões devorou aventureiros ou dizimou populações nativas, onde se faz possível a compreensão do exílio e da diáspora como retorno. Identidade traduzida por gentileza primitiva, o primeiro lampejo diante do estrangeiro pode ter sido de inocência mútua. Seja dos que chegaram por migrações das “Índias" num passado remoto, dos que acreditaram ter descoberto o paraíso, dos que vieram em busca de nova esperança, dos que aportaram sem que tivessem escolha - exploradores ou colonizadores, degredados, escravos, refugiados, clandestinos, imigrantes em geral, e agora os turistas - sob a soberania pacífica do amor e do perdão, feitos da consagração do absurdo.

No mito fundador, nas profecias, no sebastianismo, nos Ifás do candomblé, as diversas tradições no Brasil não se afirmam em superações, mas em traduções umas às outras. Ou nas palavras de Isaías (11:6) "o lobo morará com o cordeiro, o leopardo se deitará com o cabrito. O bezerro, o leãozinho e o gordo novilho andarão juntos e um menino pequeno os guiará". Onde bastaria coexistência, congraçamento; onde bastaria tolerância, celebração; onde bastaria simpatia, amor. Por isso é surpreendente, a cada vez, cair no contrassenso e na folia de uma ginga redentora.

Paganismo Transcendental

Para o consulado da Áustria em ocasião do evento realizado por Jorge Mautner sobre cultura brasileira e o escritor autríaco Stefan Sweig, autor de “Brasil, País do Futuro”, em dezembro de 2008.
Por Jean Kuperman.


As projeções provocantes de Stefan Zweig que exaltam o Brasil como o país do futuro parecem ter encontrado eco desde então. Passaram a fazer parte de um imaginário popular que, de alguma forma, seja aceitando ou rejeitando o rótulo, se identificava com a ideia, mesmo que nem lhe ocorresse de que se tratava de um livro, quanto mais de Stefan Sweig. Na aurora do séc. XXI, gigante pela própria natureza ou pelo eterno berço esplêndido das contradições humanas, para algumas dessas previsões, novas interpretações já podem ser feitas.

Para além de lutas travadas no passado, que tanto serviram para abastar os exploradores, fomentar a miséria dos explorados e que continuam sendo mimetizadas por interesses sórdidos, temos hoje um momento nunca experimentado na democracia e nas relações diplomáticas. O que nos faz perguntar se acaso são mudanças reais. Com o país politicamente elevado a uma nova categoria no cenário global de redefinição dos papéis e organização dos modelos, seu imaginário vai sendo reconstituído com o selo do poder. Certo que em meio a tantos escândalos, abusos, impunidade, quem poderia explicar balanços positivos? Mas pela primeira vez nunca se teve tanta independência, o próprio leme econômico nas mãos e a imensa reserva ainda intacta de matérias primas monitorada por um sistema em elaboração. O que implica, é claro, em maiores responsabilidades.

O panorama atual tem, entretanto, o mesmo tamanho das formas de sabotagem. As práticas de mercado cumprem a função reguladora de um planeta conectado, mas precisam lidar com condutas governamentais, com equilíbrio de forças atávicas, com a autogestão e seus humores. E nos paradoxos do novo século, que inicia sob auspícios de nacionalismos melindrosos, entre liberdade e vigilância, informação e alienação, qualidade de vida e consumo, desenvolvimento e ecologia, direitos humanos e fanatismo, em cada cena se infiltra a cultura. Agente diferenciador capaz de gerar profundas discórdias mas também elementos de identificação, as culturas são apontadas como um dos pilares de transformação mundial.

O Brasil, com graves problemas sociais, tem, por isso, a contribuir. Talvez aí esteja a leitura do “país do futuro” que interessa e se revela: um país continente, um acontecimento que profetiza o encontro das culturas. Qualquer ufanismo parece pequeno diante da descoberta humana que se dá na formação do povo brasileiro. O país do futuro, já que também se descobre a si próprio. Um modelo de convívio que um mundo de transmigrações terá que produzir para seu bem estar.

Onde tribos índigenas ainda vivem numa floresta a se perder de vista? Onde escravos africanos, em muitos casos inimigos de guerras em seus territórios de origem reconstruíram suas tradições com tamanha diversidade? Onde a história reinicia e a cultura renasce transtribalizada pelos que escrevem novos capítulos da matriz indígena, da diáspora negra, da imigração dos refugiados? Macunaíma, o herói sem caráter de Mário de Andrade, e tudo o que foi tomado por falta de identidade, ressurge a cada instante.

Um lugar com dimensões continentais que pudesse aceitar e abrigar inúmeras culturas precedentes, nas palavras de Camões, Padre Antônio Vieira e Fernando Pessoa, seria o caldeirão formador do quinto império cultural. Das religiões que vieram a compor o povo das Américas, enquanto a herança anglo-saxã da América do Norte está na ética reformada, protestante e puritana, as bandas do sul são latinas e católicas, e onde o paganismo encontra terreno muito mais fértil, herança de um catolicismo repleto de santos e práticas profanas na Idade Média.

Mosaico tropical, lugar de convívio imediato, que em tantas ocasiões devorou aventureiros ou dizimou populações nativas, onde se faz possível a compreensão do exílio e da diáspora como retorno. Identidade traduzida por gentileza primitiva, o primeiro lampejo diante do estrangeiro pode ter sido de inocência mútua. Seja dos que chegaram por migrações das “Índias" num passado remoto, dos que acreditaram ter descoberto o paraíso, dos que vieram em busca de nova esperança, dos que aportaram sem que tivessem escolha - exploradores ou colonizadores, degredados, escravos, refugiados, clandestinos, imigrantes em geral, e agora os turistas - senão sob a soberania do amor e do perdão, ao menos da consagração do absurdo.

No mito fundador, nas profecias, no sebastianismo, nos Ifás do candomblé, as diversas tradições no Brasil não se afirmam em superações, mas em traduções umas às outras. Ou nas palavras de Isaías (11:6) "o lobo morará com o cordeiro, o leopardo se deitará com o cabrito. O bezerro, o leãozinho e o gordo novilho andarão juntos e um menino pequeno os guiará". Onde bastaria coexistência, congraçamento; onde bastaria tolerância, celebração; onde bastaria simpatia, amor. Por isso é uma surpresa, a cada vez, o contrassenso e a folia de uma ginga redentora.

Paganismo Transcendental

Para o consulado da Áustria em ocasião do evento realizado por Jorge Mautner sobre cultura brasileira e o escritor autríaco Stefan Sweig, autor de “Brasil, País do Futuro”, em dezembro de 2008.
Por Jean Kuperman.


As projeções provocantes de Stefan Zweig que exaltam o Brasil como o país do futuro parecem ter encontrado eco desde então. Passaram a fazer parte de um imaginário popular que, de alguma forma, seja aceitando ou rejeitando o rótulo, se identificava com a ideia, mesmo que nem lhe ocorresse de que se tratava de um livro, quanto mais de Stefan Sweig. Na aurora do séc. XXI, gigante pela própria natureza ou pelo eterno berço esplêndido das contradições humanas, para algumas dessas previsões, novas interpretações já podem ser feitas.

Para além de lutas travadas no passado, que tanto serviram para abastar os exploradores, fomentar a miséria dos explorados e que continuam sendo mimetizadas por interesses sórdidos, temos hoje um momento nunca experimentado na democracia e nas relações diplomáticas. O que nos faz perguntar se acaso são mudanças reais. Com o país politicamente elevado a uma nova categoria no cenário global de redefinição dos papéis e organização dos modelos, seu imaginário vai sendo reconstituído com o selo do poder. Certo que em meio a tantos escândalos, abusos, impunidade, quem poderia explicar balanços positivos? Mas pela primeira vez nunca se teve tanta independência, o próprio leme econômico nas mãos e a imensa reserva ainda intacta de matérias primas monitorada por um sistema em elaboração. O que implica, é claro, em maiores responsabilidades.

O panorama atual tem, entretanto, o mesmo tamanho das formas de sabotagem. As práticas de mercado cumprem a função reguladora de um planeta conectado, mas precisam lidar com condutas governamentais, com equilíbrio de forças atávicas, com a autogestão e seus humores. E nos paradoxos do novo século, que inicia sob auspícios de nacionalismos melindrosos, entre liberdade e vigilância, informação e alienação, qualidade de vida e consumo, desenvolvimento e ecologia, direitos humanos e fanatismo, em cada cena se infiltra a cultura. Agente diferenciador capaz de gerar profundas discórdias mas também elementos de identificação, as culturas são apontadas como um dos pilares de transformação mundial.

O Brasil, com graves problemas sociais, tem, por isso, a contribuir. Talvez aí esteja a leitura do “país do futuro” que interessa e se revela: um país continente, um acontecimento que profetiza o encontro das culturas. Qualquer ufanismo parece pequeno diante da descoberta humana que se dá na formação do povo brasileiro. O país do futuro, já que também descobre a si próprio. O convívio que um mundo de transmigrações terá que produzir para seu bem estar.

Onde tribos índigenas ainda vivem numa floresta de tamanhas proporções? Onde escravos africanos, em muitos casos inimigos de guerras em seus territórios de origem reconstruíram suas tradições com tanta diversidade? Onde a história reinicia e a cultura renasce transtribalizada pelos que escrevem novos capítulos da matriz indígena, da diáspora negra, da imigração dos refugiados? Macunaíma, o herói sem caráter de Mário de Andrade, e tudo o que foi tomado por falta de identidade, ressurge a cada instante.

Um lugar que pudesse aceitar e abrigar inúmeras culturas precedentes, nas palavras de Camões, Padre Antônio Vieira e Fernando Pessoa, seria o caldeirão formador do quinto império cultural. Das religiões que vieram a compor o povo das Américas, enquanto a herança anglo-saxã da América do Norte está na ética reformada, protestante e puritana, as bandas do sul, latinas, católicas e onde o paganismo encontra terreno muito mais fértil, herança de um catolicismo repleto de santos e práticas profanas na Idade Média.

Mosaico tropical, lugar de convívio imediato, que em tantas ocasiões devorou aventureiros ou dizimou populações nativas, onde se faz possível a compreensão do exílio e da diáspora como retorno. Identidade traduzida por gentileza primitiva, o primeiro lampejo diante do estrangeiro pode ter sido de inocência mútua. Seja dos que chegaram por migrações das “Índias" num passado remoto, dos que acreditaram ter descoberto o paraíso, dos que vieram em busca de nova esperança, dos que aportaram sem escolha - exploradores ou colonizadores, degredados, escravos, refugiados, clandestinos, imigrantes em geral, e agora os turistas - sob a soberania do amor e do perdão, feitos da consagração do absurdo.

No mito fundador, nas profecias, no sebastianismo, nos Ifás do candomblé, as diversas tradições no Brasil não se afirmam em superações, mas em traduções umas às outras. Ou nas palavras de Isaías (11:6) "o lobo morará com o cordeiro, o leopardo se deitará com o cabrito. O bezerro, o leãozinho e o gordo novilho andarão juntos e um menino pequeno os guiará". Onde bastaria coexistência, congraçamento; onde bastaria tolerância, celebração; onde bastaria simpatia, amor. Por isso a surpresa, a cada vez, da folia de uma ginga redentora.

15 de mai. de 2011

Libertas Quae Sera Tamen

Arco do Teles: 21/04/2011 – Feriado de Tiradentes.


Parte 1 - Golem Libre - Chegamos por volta das 17hs e tínhamos uma hora de luz para filmar. Fizemos a primeira, escolhida pela companhia de um desses sujeitos misteriosos que circulam por aí sem identidade, sem história. Aquele pegava guimbas no chão e depois sentou para escrever (ou pintar). Fomos perceber papel e caneta na sua mão só quando assistimos a filmagem. Parecia também um velho catador de latas, pelo saco preto que levava junto.
O golem é um ser mítico, feito de barro, presente no misticismo judaico e sabe-se lá onde mais anteriormente, associado a Frankstein e aos replicantes. A letra da música situa o golem na rua de um país tropical abençoado por deus e bonito por natureza, mas naturalmente escondido dos olhos de fora.
Fizemos dois takes da parte 1. O primeiro foi passando a música e, no fim, mostrando nosso personagem quieto e sentado. Numa jogada rápida de foco se vê que está com o papel e a caneta na mão. O segundo take aconteceu debaixo do arco. A acústica ficou  ótima e o cenário parecia de brinquedo. Reverb de jaula, Projac de rua. Esse filme foi o que mais me provocou. Fiquei pensando no homem do saco que aparece comigo na cena surreal.



Parte 2 - Civilidad – Uma parceria com Donatinho. Vinda de um Mandrake dos barulhinhos, a melodia criada por ele surge de formas diferentes e minimalistas. Toco essa música de dez jeitos. Ele chama essa de “versão gipsy durona”. A música fazia parte do repertório do Exu Mandrake, que continua em estado de criogenia, esperando a primavera chegar. Ficou só o registro de costas cantando a canção enquanto explorava o lugar atrás de um foco astral.



Parte 3 - Sambarábico – Escolhemos uma música que combinava com o mural no mesmo beco. Travessa do Comércio. E o comércio nunca mais foi o mesmo depois da expansão do Islã mundo afora. A mercadoria negra é humana, escrava e fruto de uma guerra religiosa com interesses econômicos que veio desaguar nas Américas. Dessa expansão vêm mudanças que nos chegam diretamente.  Uma delas aponta para a maior rebelião urbana de escravos das Américas. A Revolta dos MalêsE que dá nome ao personagem: Exu Mustafa. Eram nagôs islamizados que, em geral, por saberem escrever em árabe e serem versados no Alcorão, se articularam em algumas revoltas ao longo do séc. XIX. Foram eles que organizaram o movimento, como já disse Caetano, talvez um belo espécime da tribo de Jah com Alah.
A gravação quase é interrompida por um grupo de pessoas que estava passando. Talvez tivessem ficados assustados e não sabiam como se comportar diante daquele mameluco maluco tocando violão para um outro maluco mameluco filmar. No final aparece o responsável pelo “Videokê Club Gente Boa” na sacada do sobrado onde funciona o videokê. Ele convida a gente pra subir. As próximas duas partes são feitas lá dentro.



Parte 4 - As Rosas Não Falam – Cantei essa música saudoso dos meus amores perdidos. E esperançoso pelos amores que anunciam sua chegada triunfal. A lentidão do fim da tarde do lado de fora e o clima cigano deste samba do grande mestre Cartola, as imagens ao fundo, os símbolos, a bandeira do Brasil, a máscara africana no final, tudo tem o aconchego de um teto de cabaré antes da noite chegar.



Parte 5 - Oráculo – Luz indo embora. Escolhemos uma música profética que anuncia os tempos do messias pagão. O paganismo transcendental que sugere Fernando Pessoa encontra eco por aqui. Cito "Mambembe" de Chico Buarque. Talvez seja acusado por plágio, talvez não, porque na natureza nada se cria, tudo se amplia.
Gravamos na sacada do sobrado inspirado em duas meninas que me assistiam de baixo. Parecia uma serenata ao avesso, onde o negão na janela canta para as princesinhas na rua. Profetas loucos. Burguesinha, burguesinha



Parte 6 - Sabra – Depois de beber uma ou duas no videokê, ainda fizemos uma música em frente ao Paço Imperial. E aí já inspirados também pela chegada da noite. As Sabras são israelenses. Talvez resgatem no matriarcado os germes do movimento feminista. A primavera árabe começa ali, com pistoleiras espirituais. Flores e espinhos em suas armas.
Aos poucos a gravação parece entrar numa onda hipnótica com aquele cenário e a parede exterior do Paço, que ainda parece uma grande prisão. A luz no fim da tarde, o torpor da cerveja hidratando a alma, as lâmpadas e os halos de cor, tudo se misturando e embaçando a vista. A perspectiva mudando em efeitos naturais, digitais e energéticos. Auras do fim do dia. A liberdade estava consumada. Libertas Quae Sera Tamen!

17 de mar. de 2011

Dandara e o Estandarte

Infinitas possibilidades. Espaço na cuca e um iPhone nas mãos. Jean Kuperman e Rodrigo Negrão dandarandando pelos arredores do centro de um Rio em grandes mudanças, cantando as sempre inspiradoras musas de todos.



Dandara e o Estandarte
Uma menina da Palestina
Nas ladeiras de Olinda
Tirou o véu que escondia o céu
E era muito linda, muito linda
Uma angolana lá de Luanda
Na orla de Copacabana
Se encantou pelo esplendor
Dançando uma ciranda, uma ciranda
O carnaval é o litoral
Onde o amor chegou
E o estandarte desembarcou

Aquela tcheca, muito sapeca
Depois que a esquerda abriu as pernas
Deu de pular pras bandas de cá
Feito perereca, vem perereca
Também a turca tava lá de burca
E quis conhecer o pão de açúcar
Doce afegã contra o talibã
Vai passear na Urca, morro da Urca
O carnaval é o litoral
Onde o amor chegou
E o estandarte desembarcou

Já pra a chechena valeu a pena
A opressão era tremenda
Agora sei porque a CIA
Não aguentou a pemba, deixou a cena
E a judia no outro dia
Se apaixonou pela Bahia
A Israel do leite, do mel
Que lhe pertencia e derretia
O carnaval é o litoral
Onde o amor chegou
E o estandarte desembarcou